quarta-feira, 1 de junho de 2011

Líderes contra o desmatamento assassinados no Pará

Pessoal,

Eis a nota pública do Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas (PPGAA/UFPA) e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS) sobre 

Líderes contra o desmatamento assassinados no Pará

“As árvores são nossas irmãs” (Zé Cláudio)

A área do Projeto Agroextrativista (PAE) Praia Alta Piranheira foi um maciço castanhal que só os moradores mais antigos conheceram. O castanhal foi explorado durante muito tempo por uma família de Marabá, que se dizia “dona”, e por centenas de famílias que coletavam livremente os produtos generosamente cedidos pela natureza. Além da castanha, eram e ainda são facilmente encontrados na floresta do PAE produtos como açaí, andiroba, cupuaçu, diferentes tipos de cipós, ervas medicinais e muitas espécies madeireiras de alto valor econômico.

Na década de 1990, um grupo de famílias apoiado por organizações não governamentais e governamentais deu início à solicitação de criação do PAE Praia Alta Piranheira. Entre essas famílias encontravam-se JOSÉ CLÁUDIO RIBEIRO DA SILVA (Zé Cláudio) e sua esposa MARIA DO ESPÍRITO SANTO SILVA (D. Maria). Zé Claudio e D. Maria eram os mais fervorosos defensores da criação do PAE por acreditarem na possibilidade de se estabelecer uma relação diferente com a natureza. Finalmente criado em 1997, o PAE abrigava mais de 300 famílias de agricultores que se propunham a explorar a natureza de uma forma distinta da comumente adotada na região.

Zé Claudio e D. Maria exercitaram essa nova proposta ao extremo: transformaram seu lote em um laboratório de experiências que demonstrava uma convivência mais harmoniosa entre homem e natureza e, mais que isso, acabaram se tornando sentinelas da preservação e transformando seu espaço de vida em uma zona de resistência ao desmatamento. Com quase 15 anos vivendo no mesmo lugar, o casal mantinha 80% do seu lote preservado. Essa façanha era motivo de orgulho para Zé Claudio e D. Maria.

Por essa peculiaridade, em uma região onde predomina o desmatamento, não demorou muito para que o lote de Zé Claudio e D. Maria chamasse atenção de pesquisadores, da mídia, além de servir de estímulo e exemplo para centenas de famílias de agricultores que intercambiavam conhecimentos com o casal.

Na busca de comprovações na linguagem acadêmica de que, além do valor cultural, a floresta em pé é mais valiosa economicamente que em toras, Zé Claudio e D. Maria se aliaram com os pesquisadores. A Universidade Federal do Pará (em especial as ações do Campus Universitário de Marabá e do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural) apoiou e ampliou cooperações científicas (nacionais e internacionais) com a participação dessas lideranças, que muito contribuíram com ações concretas na busca de alternativas sustentáveis de combate ao desmatamento.

No início deste ano, Dona Maria defendeu sua monografia e obteve seu diploma de graduação no curso de Pedagogia do Campo, assim como vários assentados e lideranças que acessam com frequência os espaços da UFPA e de outras instituições de pesquisa.

O filho caçula do casal cursa atualmente o ensino médio no Instituto Federal do Pará/Campus Rural de Marabá (IFPA/CRMB), concebido especialmente para grupos sociais no campo. Esta família é um exemplo de busca e implementação de políticas públicas que realmente valorizem as demandas dos camponeses que habitam neste complexo espaço agrário marcado pela deficiente ação do Estado brasileiro.

Porém, a presença de espécies de alto valor comercial na área do PAE atraía outros interesses. Madeireiros e carvoeiros lançaram uma ofensiva forte sobre as famílias. Num contexto de dificuldades econômicas, muitas cederam ao conto do lucro fácil, o que facilitava a ação ilegal desses exploradores da floresta. Protegidos pela ineficiência do Estado em fazer cumprir a lei ambiental, esses agentes circulam livremente no PAE, consumindo a floresta numa velocidade estonteante. Até a castanheira, árvore protegida por lei, é derrubada sem piedade e sua madeira “maquiada” e colocada no mercado com outros nomes.

A preocupação de Zé Claudio e D. Maria com a preservação da cobertura vegetal extrapolava o seu próprio lote e se estendia a todo o PAE. Foi exatamente essa preocupação que os levou a denunciar a exploração ilegal de madeira dentro do PAE. Órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Policia Federal receberam inúmeras denúncias formuladas pelo casal. Sem nenhuma resposta efetiva por parte desses órgãos, assumiram a responsabilidade como cidadãos e assentados e passaram a tomar iniciativas de ação direta, interditando estradas, parando caminhões carregados com toras de madeira, anotando as placas, sem medir esforços em defesa das árvores.

Essa atitude corajosa do casal, motivada por um sentimento nobre e de coerência com seus princípios, despertou a ira dos madeireiros, carvoeiros e alguns fazendeiros com interesse nas áreas do PAE. Zé Claudio e D. Maria passaram a sofrer ameaças por defenderem a floresta em pé. Na verdade, eles tentavam fazer o que de direito seria dever do Estado: proibir a exploração ilegal de madeira conforme reza a lei. Sem o apoio do Estado, Zé Claudio e D. Maria defendiam a floresta com a própria vida e tinham consciência do que faziam. Em 2010, em um evento na cidade de Manaus, Zé Claudio disse: “Eu defendo a floresta e seus habitantes em pé, mas devido a esse meu trabalho sou ameaçado de morte pelos empresários da madeira, que não querem ver a floresta em pé”.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) já havia denunciado as ameaças sofridas pelo casal. Zé Claudio e D. Maria faziam parte da lista de 29 pessoas marcadas para morrer no Pará, divulgada pela CPT em 2010. Que sociedade é essa? Uma sociedade na qual as mortes são anunciadas com bastante antecedência e as autoridades não tomam providências! Uma sociedade onde os valores se inverteram. Quem defende a vida, paga com a morte! Quem se preocupa com o bem comum é eliminado para desobstruir o caminho do lucro fácil!

No dia 24 de maio de 2011, em uma tocaia armada por “pistoleiros”, escondidos em uma estrada que Zé Claudio e D. Maria usavam no trajeto entre seu lote e a cidade de Nova Ipixuna, foram desferidos os disparos mortais contra o casal. Não satisfeitos com a crueldade praticada, ainda deceparam a orelha de Zé Claudio, provavelmente para servir de prova da encomenda realizada. Essa infâmia, muito comum no período do coronelismo no nordeste brasileiro, é agora reeditada na Amazônia. Dias antes, a casa do Zé Claudio e D. Maria havia sido rondada por pistoleiros e alguns de seus animais domésticos foram alvejados. No dia do assassinato, Zé Claudio e D. Maria estavam saindo de sua casa para procurar segurança na cidade, dado que, aparentemente, o Estado era incapaz de fornecer segurança. Infelizmente, não tiveram tempo de chegar a um lugar seguro.

E, desta forma, o Ano Internacional da Floresta segue marcado por injustiças, impunidades, descasos com as pessoas, suas escolhas e seus direitos. Exigimos que o governo brasileiro não deixe que Zé Cláudio e D. Maria sejam apenas mártires, como tantos outros produzidos na Amazônia, e muitos menos que sejam uma mera estatística criminal. Para se ter a Democracia, certamente precisamos de códigos e leis. E, certamente, o debate democrático acerca dos mesmos é necessário. No entanto, sabemos que não existe Democracia quando o direito de matar aqueles que contestam o poder dominante é assegurado pela complacência à violação do direito fundamental à vida. A Amazônia e os “povos da floresta” não necessitam de mais mártires, mas de pessoas vivas, comprometidas e éticas, que os mantenham. Eles não necessitam de mais violência. Eles têm o direito – constitucional – a dignidade, liberdade de expressão, autonomia e exercício da cidadania.

Em qualquer lugar, e no Brasil que se diz uma Democracia, não é admissível que pessoas possam ser assassinadas pela divergência ao poder corrente e pelo exercício de seus direitos. Não é possível haver “dois Estados” e “duas leis” em um só país, afinal, uma lei que vale apenas para alguns, não é lei. Os assassinatos de José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva não são ocorrências individuais, são um problema nosso, de toda a sociedade brasileira. Precisamos reagir. Reagimos porque acreditamos que podemos contribuir, interrogando sobre os conceitos que fundam a interpretação dos conflitos na Amazônia e permeiam as políticas públicas brasileiras de desenvolvimento. Reagimos porque não é possível admitir a violência como instrumento de regulação social. Reafirmamos aqui nosso compromisso de lutar com as nossas armas: documentando, refletindo e oferecendo à sociedade interpretações sobre esse fenômeno sociopolítico que acompanha o “desenvolvimento sustentável” na Amazônia: a morte anunciada dos defensores da floresta.

“Matar árvores é assassinato” (Zé Claudio)

Agora em Inglês


Leaders against deforestation assassinated in the State of Pará, Brazil

Public Note by the Graduate Program in Amazonian Agricultures at the Federal University of Pará (PPGAA/UFPA) and the Graduate Program in Rural Development at the Federal University of Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS)

“The trees are our sisters” ( Zé Claudio)

The Agro-extractive Project of Praia Alta Piranheira (PAE) was an area of abundant Brazilian nut groves in the past, known only to the older residents. The groves were exploited for a long time by a family in Marabá, that called themselves the “owners”, but also by other hundreds of families that collected the products generously granted by nature. In addition to the Brazil nuts, other products were and are still easily found in the PAE forests, such as açaí, andiroba, cupuaçu, different types of vines, medicinal herbs, and a variety of wood species of high economic value.

In the 90s, with the support of NGOs and governmental agencies, a group of families solicited the creation of PAE Praia Alta Piranheira. Among these families was JOSÉ CLÁUDIO RIBEIRO DA SILVA ( Zé Cláudio) and his wife MARIA DO ESPIRÍTO SANTO SILVA ( D. Maria). Zé Cláudio and D. Maria were the most fervent defenders for the creation of PAE for believing in the possibility of establishing a different relationship with nature. Finally created in 1997, PAE was home to more than 300 agricultural families that were dedicated to exploring nature in a manner that was different from conventional predatory uses.

Zé Claudio and D. Maria took this new vision to the extreme by transforming their own parcel into a laboratory of experiences, which demonstrated a harmonious relationship between man and nature. Most importantly, they became sentinels of preservation and transformed their own space into a zone resistant to deforestation. Almost 15years living in the same place, the couple successfully preserved 80% of their lot, a proud accomplishment for both Zé Claudio and D. Maria. Especially, in a region where deforestation is dominant, this peculiarity gained attention from researchers, media, in addition to serve as a model for hundreds of agricultural families.

In search of academically grounded research proving the cultural and economic value of standing trees, as opposed to logging, Zé  Claudio and D. Maria allied to researchers. The Federal University of Para (especially the Maraba campus and the Center for Agrarian Sciences and Rural Development), supported and expanded scientific cooperation (national and international) with participation from leaders that collaborated on the search towards sustainable alternatives against deforestation.

In the beginning of this year, D. Maria defended her undergraduate final paper and received her diploma in Agrarian Pedagogy, like many others from the community that have accessed UFPA and other research institutions. Their youngest son is currently enrolled in the Federal Institute of Pará/ Rural Campus at Marabá (IFPA/CRMB), conceived especially for rural social groups. This is an exemplary family, that through much determination have implemented public policies that meet the demands of peasants that inhabit this complex agrarian space, defined by the deficient administration from the Brazilian State.

However, wood species of high commercial value in the PAE area attracted other interests. Loggers and entrepreneurs dealing with charcoal launched a strong offensive over the families. In the context of economic struggles, many gave in to make easy profits, facilitating access to illegal exploitation. Protected by the State’s inefficiency to enforce environmental laws, these agents flow freely through the PAE, rapidly devastating the forest. Even the Brazil nut tree, which is protected by law, does not escape the saw, and is then disguised in the market under another species name.

Zé Claudio and D. Maria’s determination to preserve the forest extended beyond their own lot to all of PAE. It was this determination that motivated them to report illegal logging inside PAE. Governmental agencies such as the Brazilian Institute for the Renewable Resources and the Environment ( IBAMA), National Institute for Colonization and Agrarian Reform ( INCRA) and the Federal Police received several reports from the couple. Without any response, they decided to take matters into their own hands and began direct intervention, such as blocking roads, stopping trucks loaded with logs and writing down their plates.

This brave initiative, motivated by a strong sense of morality, was interpreted as a call for war against the loggers, colliers and some farmers who had economic interests in the PAE area. Zé Cláudio and D. Maria began to receive threats for defending the forest. They were taking on the State’s responsibility to enforce environmental legislation. Without due governmental support, they ran serious risks, but were very conscious of this danger. In 2010, in an event in Manaus, Zé Claudio said: “I defend the forest and its inhabitants, but because of this work, I am threatened to death by the loggers that don’t want to see a forest with standing trees.”

The Pastoral Land Commission ( CPT) had already reported the threats received by the couple. In 2010, CPT released a death list of 29 people from Pará, where Zé Claudio and D. Maria were included. What kind of society is this? A society where deaths are previously announced, and no authoritative action is taken to prevent them? A society where values have been inverted. A society where those who defend life, must pay with their own life. Those concerned with the common good are quickly eliminated to allow fast profits to keep flowing!

In May 24, 2011, hidden gunmen awaited for the couple on the highway they used to travel to Nova Ipixuna. With instructions to kill, the gunmen shot the couple until their death. In a cruel attempt to prove the job was complete, Zé Claudio’s ear was savagely taken. This infamous gesture was very common in the Brazilian Northeast, and is now reedited in the Amazon. Days before the murder, gunmen prowled Zé Claudio and D. Maria’s property, targeting some of their pets. On the day of the murder, they were leaving home in search of safety in the city, but it was too late.

On this note, the International Year of the Forest is marked by injustice, impunities, and neglect of people’s rights and morals. We demand that the Brazilian government does not allow Zé Claudio and D. Maria to remain just as fruitless martyrs, like many other cases in the Amazon, and much less forgotten as criminal statistics. To have a Democracy, we certainly need laws and codes. We understand that a Democracy needs debates. However, Democracy cannot thrive when the right to kill those that oppose the dominant power is secured by complacency towards violation of the fundamental right of life. The Amazon and the “people of the forest” don’t need martyrs, but people who are alive and ethically committed towards its protection.  They do not need more violence. They have the right -- the constitutional right – to dignity, freedom of speech, and autonomy as civilians.

Anywhere, especially in the so called Brazilian Democracy, it is not admissible that people are murdered for diverting to the dominant power, and believing in their rights as citizens. It is not possible to have “two States” and “two Laws” in the same country, after all, a law that is applicable only to a few, is not a law at all. The murder of José Claudio Ribeiro da Silva and Maria do Espírito Santo da Silva are not individual cases. This is a problem of ours, and of the entire Brazilian society. We must react. We react because we believe we can contribute, questioning the concepts that interpret the conflicts in the Amazon and that permeate the politics of development in Brazil.

We react because it is inconceivable to allow violence as an instrument of social regulation. We reaffirm our commitment to fight with our own weapons: documenting, reflecting and offering to society, interpretations about this sociopolitical phenomenon that follows “sustainable development” in the Amazon: the announced death of the defenders of the forest.


                                                           “Killing trees is murder” ( Zé Claudio)

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